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quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Traquina e a contribuição portuguesa para a teoria do jornalismo no Brasil

Por Eduardo Meditsch em 20/04/2004 na edição 273

Em meados dos anos 1970, estudante de Jornalismo em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, um jovem chamado Adelmo Genro Filho começa a publicar uma série de artigos em jornais locais apontando ‘a necessidade de uma teoria do jornalismo’ e anotando quais deveriam ser, no seu ponto de vista, os fundamentos da nova disciplina. Aluno incomum, leitor de filósofos e estudiosos da sociedade, Adelmo se assombrava com o primarismo das definições sobre a profissão vigentes na prática profissional e repassadas à literatura técnica dos cursos universitários de então. Uma década mais tarde, publicaria O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo, produto de sua dissertação de mestrado em Sociologia Política, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), instituição onde se tornara professor de Jornalismo. E morreria subitamente em seguida, sem poder dar continuidade a esta linha de investigação.

Embora não tenha sido a primeira pessoa a estudar e a escrever sobre o jornalismo no Brasil, Adelmo é lembrado como o fundador da disciplina Teoria do Jornalismo no Brasil. Ninguém como ele, em nosso país, contribuiu tanto para apontar a lacuna teórica da formação profissional e a necessidade deste recorte inédito nos estudos científicos de comunicação social, para dar sentido a uma prática social tão importante quanto mal compreendida. Como marxista, se incomodava particularmente com a incapacidade da esquerda para compreender a lidar com o potencial do jornalismo na tarefa da emancipação humana.
Coincidiu com a época do lançamento do livro de Genro Filho, em meados dos anos 1980, a institucionalização da disciplina na universidade brasileira, em alguns casos sob a sua influência, em outros por meio de pesquisadores como os professores José Marques de Melo e Ciro Marcondes Filho, em São Paulo, e Alberto Dines e Nilson Lage, no Rio de Janeiro. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul teria sido a primeira a dar este passo, por iniciativa da professora Rosa Nívea Pedroso, que incluiu a disciplina no programa daquele curso antes da própria UFSC (onde, por algum tempo, seu conteúdo foi ministrado por Genro Filho com o rótulo de Teoria da Comunicação II).
Ferramentas fundamentais

Se teve como ponto forte a originalidade, a teoria do jornalismo que se desenvolveu no Brasil naquela época se colocava um tanto à margem dos estudos e descobertas que se faziam no campo em nível internacional. Não havia internet, importar um livro era caro e complicado, traduzi-lo era quase impossível, e o incipiente intercâmbio internacional na área acadêmica da comunicação, dominado por pesquisadores interessados em outros temas, desprezava o jornalismo como objeto digno de estudo.
Somente na virada do século é que a Teoria do Jornalismo começou a ser conhecida e adotada por parte significativa dos cursos de jornalismo do Brasil, já então contados às centenas. Concorreu para isso o crescimento dos estudos de jornalismo na pós-graduação, embora ainda de forma marginal no campo da comunicação social, onde geralmente continuam menosprezados. Foi decisivo o fato da matéria ter sido incluída como obrigatória nos cursos de graduação, por exigência do Exame Nacional de Cursos do Ministério da Educação, o Provão, que avaliou as escolas de jornalismo do país a partir de 1998.
Nesta nova fase, têm sido ferramentas fundamentais para a consolidação e o desenvolvimento da disciplina as coletâneas de estudos internacionais sobre o jornalismo, organizadas e traduzidas para a língua portuguesa pelo professor Nelson Traquina, que começaram a desembarcar neste lado do Atlântico (Jornalismos, Lisboa, Centro de Estudos de Comunicação e Linguagens, 1988;Jornalismo: questões, teorias e estórias, Lisboa, Editora Vega, 1993; Jornalismo 2000, Lisboa, Relógio D’Água, 2000; O poder do jornalismo: análise e textos da teoria do agendamento, Coimbra, Minerva, 2000).

Teoria da notícia

Nas provas que o tornaram catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de Lisboa, em 1997, o professor Nelson Traquina testemunhava o boom de estudos científicos centrados no jornalismo como objeto, a partir dos anos 1970, e que não cessavam de se reproduzir e crescer ao redor do mundo.
Talvez por sua biografia, este scholarportuguês nascido em Springfield, Massachusetts, numa colônia de trabalhadores emigrantes, licenciado e mestre em Política Internacional nos Estados Unidos, formado também em Jornalismo pelo Institut Français de Presse e doutorado em Sociologia pela René Descartes de Paris, com tese sobre as agências internacionais de informação, já se tornara então o acadêmico mais bem-informado, no mundo de língua portuguesa, sobre a abrangência desta nova área científica em escala global.

Traquina estudou por dentro as agências internacionais. Como jornalista, havia sido correspondente da United Press International (também da UPI News Television e do Daily Telegraph) em Lisboa, no conturbado período pós-revolucionário, em meados dos anos 1970, que colocou Portugal nos noticiários de todo o mundo. Após o doutorado, tornou-se professor do primeiro curso de Comunicação Social de Portugal – fundado em 1979 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL) –, escola criada por um grupo de intelectuais retornados do exílio com o fim do salazarismo, trazendo uma renovada perspectiva humanista para o multicentenário ensino superior português.

A partir da UNL, a influência de Nelson Traquina ajudou a moldar a fisionomia de todo o ensino universitário do Jornalismo em Portugal que, como no Brasil, passou por uma grande expansão nos anos 90, com a criação de dezenas de novas escolas. Desde o início, ele rejeitou a possibilidade de um ensino tecnicista da profissão, sustentando que a universidade deveria oferecer algo mais que a ‘tarimba’ que caracterizava o aprendizado do ofício na prática, anterior à formação de nível superior.
Para Traquina, o que deveria distinguir a formação universitária seria o estudo teórico desta prática. Em Portugal, a disciplina foi institucionalizada com o nome de Teoria da Notícia (por influência da inglesa News Theory) e ministrada por Traquina tanto na graduação quanto no mestrado da UNL a partir de 1992. As primeiras dissertações sobre jornalismo apareceram em seguida, e a primeira tese foi defendida em 1997, todas orientadas por ele.

O lançamento

Como também ocorre no Brasil, o estudo do jornalismo e da mídia em Portugal enfrenta dificuldades para se afirmar, competindo com as disciplinas tradicionais das ciências humanas, ainda mais pertencendo a um campo difuso e mal resolvido como o da comunicação social. Lá, como aqui, esses obstáculos o empurram para a busca de uma maior autonomia e de uma identidade mais clara. Em resposta a estas necessidades, o professor Nelson Traquina reuniu um grupo de pesquisadores de diversas instituições e preside, desde 1997 o Centro de Investigação Media e Jornalismo, atualmente com sede na cidade de Cascais. Em 2002, o Centro lançou a revista acadêmica Media & Jornalismo, pela Editora Minerva, de Coimbra.

Apesar de sua crescente influência entre os professores e pesquisadores da área de jornalismo no Brasil, Nelson Traquina só tinha um livro publicado aqui: O estudo do jornalismo no Século XX, lançado em 2001 pela Editora Unisinos, no Rio Grande do Sul. As obras portuguesas continuam de difícil acesso, agravado pela crescente defasagem cambial. Foi por estas razões que o Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Mídia da UFSC encomendou a ele este Teorias do Jornalismo, que aparece em dois volumes, por razões operacionais, com a chancela da Editora Insular, de Florianópolis.

A editoração e a capa do livro foram produzidas por Ginny Carla de Moraes, estudante de Jornalismo da UFSC. A revisão, para o português do Brasil, ficou a cargo da professora Regina Carvalho, mestre e doutoranda em Letras e especialista em texto jornalístico, que solucionou com maestria as diferenças de registro existentes entre o português dos dois países. A co-edição foi feita com recursos do II Curso de Especialização em Estudos de Jornalismo da UFSC. Agradecemos a todos que colaboraram para que este lançamento se tornasse possível.

Professor da UFSC

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