Traquina e a contribuição portuguesa para a teoria do jornalismo no
Brasil
Por Eduardo Meditsch em
20/04/2004 na edição 273
Em meados dos anos 1970, estudante de Jornalismo em Santa Maria,
no Rio Grande do Sul, um jovem chamado Adelmo
Genro Filho começa a publicar uma série de artigos em jornais locais
apontando ‘a necessidade de uma teoria do jornalismo’ e anotando quais deveriam
ser, no seu ponto de vista, os fundamentos da nova disciplina. Aluno incomum,
leitor de filósofos e estudiosos da sociedade, Adelmo se assombrava com o
primarismo das definições sobre a profissão vigentes na prática profissional e
repassadas à literatura técnica dos cursos universitários de então. Uma década
mais tarde, publicaria O segredo da pirâmide: para uma teoria
marxista do jornalismo, produto de sua dissertação de mestrado em
Sociologia Política, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC),
instituição onde se tornara professor de Jornalismo. E morreria subitamente em
seguida, sem poder dar continuidade a esta linha de investigação.
Embora não tenha sido a primeira pessoa a estudar e a escrever
sobre o jornalismo no Brasil, Adelmo é lembrado como o fundador da disciplina
Teoria do Jornalismo no Brasil. Ninguém como ele, em nosso país, contribuiu
tanto para apontar a lacuna teórica da formação profissional e a necessidade
deste recorte inédito nos estudos científicos de comunicação social, para dar
sentido a uma prática social tão importante quanto mal compreendida. Como
marxista, se incomodava particularmente com a incapacidade da esquerda para
compreender a lidar com o potencial do jornalismo na tarefa da emancipação
humana.
Coincidiu com a época do lançamento do livro de Genro Filho, em
meados dos anos 1980, a institucionalização da disciplina na universidade
brasileira, em alguns casos sob a sua influência, em outros por meio de
pesquisadores como os professores José Marques de Melo e Ciro Marcondes Filho,
em São Paulo, e Alberto Dines e Nilson Lage, no Rio de Janeiro. A Universidade
Federal do Rio Grande do Sul teria sido a primeira a dar este passo, por
iniciativa da professora Rosa Nívea Pedroso, que incluiu a disciplina no
programa daquele curso antes da própria UFSC (onde, por algum tempo, seu
conteúdo foi ministrado por Genro Filho com o rótulo de Teoria da Comunicação
II).
Ferramentas
fundamentais
Se teve como ponto forte a originalidade, a teoria do jornalismo
que se desenvolveu no Brasil naquela época se colocava um tanto à margem dos
estudos e descobertas que se faziam no campo em nível internacional. Não havia
internet, importar um livro era caro e complicado, traduzi-lo era quase
impossível, e o incipiente intercâmbio internacional na área acadêmica da
comunicação, dominado por pesquisadores interessados em outros temas,
desprezava o jornalismo como objeto digno de estudo.
Somente na virada do século é que a Teoria do Jornalismo começou a
ser conhecida e adotada por parte significativa dos cursos de jornalismo do
Brasil, já então contados às centenas. Concorreu para isso o crescimento dos
estudos de jornalismo na pós-graduação, embora ainda de forma marginal no campo
da comunicação social, onde geralmente continuam menosprezados. Foi decisivo o
fato da matéria ter sido incluída como obrigatória nos cursos de graduação, por
exigência do Exame Nacional de Cursos do Ministério da Educação, o Provão, que
avaliou as escolas de jornalismo do país a partir de 1998.
Nesta
nova fase, têm sido ferramentas fundamentais para a consolidação e o
desenvolvimento da disciplina as coletâneas de estudos internacionais sobre o
jornalismo, organizadas e traduzidas para a língua portuguesa pelo professor
Nelson Traquina, que começaram a desembarcar neste lado do Atlântico (Jornalismos, Lisboa, Centro de
Estudos de Comunicação e Linguagens, 1988;Jornalismo: questões, teorias e estórias, Lisboa, Editora Vega,
1993; Jornalismo 2000, Lisboa, Relógio D’Água, 2000; O poder do jornalismo: análise e textos da teoria do agendamento,
Coimbra, Minerva, 2000).
Teoria
da notícia
Nas
provas que o tornaram catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da
Universidade Nova de Lisboa, em 1997, o professor Nelson Traquina testemunhava
o boom de
estudos científicos centrados no jornalismo como objeto, a partir dos anos
1970, e que não cessavam de se reproduzir e crescer ao redor do mundo.
Talvez por sua biografia, este scholarportuguês nascido em Springfield,
Massachusetts, numa colônia de trabalhadores emigrantes, licenciado e mestre em
Política Internacional nos Estados Unidos, formado também em Jornalismo pelo
Institut Français de Presse e doutorado em Sociologia pela René Descartes de
Paris, com tese sobre as agências internacionais de informação, já se tornara
então o acadêmico mais bem-informado, no mundo de língua portuguesa, sobre a
abrangência desta nova área científica em escala global.
Traquina
estudou por dentro as agências internacionais. Como jornalista, havia sido
correspondente da United Press International (também da UPI News Television e
do Daily Telegraph) em Lisboa, no conturbado
período pós-revolucionário, em meados dos anos 1970, que colocou Portugal nos
noticiários de todo o mundo. Após o doutorado, tornou-se professor do primeiro
curso de Comunicação Social de Portugal – fundado em 1979 na Faculdade de
Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL) –, escola
criada por um grupo de intelectuais retornados do exílio com o fim do
salazarismo, trazendo uma renovada perspectiva humanista para o multicentenário
ensino superior português.
A partir da UNL, a influência de Nelson Traquina ajudou a moldar a
fisionomia de todo o ensino universitário do Jornalismo em Portugal que, como
no Brasil, passou por uma grande expansão nos anos 90, com a criação de dezenas
de novas escolas. Desde o início, ele rejeitou a possibilidade de um ensino
tecnicista da profissão, sustentando que a universidade deveria oferecer algo
mais que a ‘tarimba’ que caracterizava o aprendizado do ofício na prática,
anterior à formação de nível superior.
Para
Traquina, o que deveria distinguir a formação universitária seria o estudo
teórico desta prática. Em Portugal, a disciplina foi institucionalizada com o
nome de Teoria da Notícia (por influência da inglesa News Theory) e ministrada por Traquina tanto na
graduação quanto no mestrado da UNL a partir de 1992. As primeiras dissertações
sobre jornalismo apareceram em seguida, e a primeira tese foi defendida em
1997, todas orientadas por ele.
O
lançamento
Como
também ocorre no Brasil, o estudo do jornalismo e da mídia em Portugal enfrenta
dificuldades para se afirmar, competindo com as disciplinas tradicionais das
ciências humanas, ainda mais pertencendo a um campo difuso e mal resolvido como
o da comunicação social. Lá, como aqui, esses obstáculos o empurram para a
busca de uma maior autonomia e de uma identidade mais clara. Em resposta a
estas necessidades, o professor Nelson Traquina reuniu um grupo de
pesquisadores de diversas instituições e preside, desde 1997 o Centro de Investigação
Media e Jornalismo, atualmente com sede na cidade de Cascais. Em 2002, o Centro
lançou a revista acadêmica Media & Jornalismo, pela
Editora Minerva, de Coimbra.
Apesar de
sua crescente influência entre os professores e pesquisadores da área de jornalismo
no Brasil, Nelson Traquina só tinha um livro publicado aqui: O estudo do jornalismo no Século XX, lançado
em 2001 pela Editora Unisinos, no Rio Grande do Sul. As obras portuguesas
continuam de difícil acesso, agravado pela crescente defasagem cambial. Foi por
estas razões que o Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e Mídia da UFSC
encomendou a ele este Teorias do Jornalismo, que
aparece em dois volumes, por razões operacionais, com a chancela da Editora
Insular, de Florianópolis.
A editoração e a capa do livro foram produzidas por Ginny Carla de
Moraes, estudante de Jornalismo da UFSC. A revisão, para o português do Brasil,
ficou a cargo da professora Regina Carvalho, mestre e doutoranda em Letras e
especialista em texto jornalístico, que solucionou com maestria as diferenças
de registro existentes entre o português dos dois países. A co-edição foi feita
com recursos do II Curso de Especialização em Estudos de Jornalismo da UFSC.
Agradecemos a todos que colaboraram para que este lançamento se tornasse
possível.
Professor
da UFSC
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